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Ninguém encontrou nem jamais há-de encontrar (Voltaire)

Editada em 2014 pela Sistema Solar, a Autobiografia de Thomas Bernhard reúne os cinco volumes autobiográficos publicados ao longo de sete anos. São eles A Causa (1975), A Cave (1976), A Respiração (1978), O Frio (1981) e Uma Criança (1982). Por meio deles o autor dá a conhecer a sua infância e a sua juventude, período decisivo para a construção da personalidade, carácter e carreira, numa obra essencialmente literária, em que procura fornecer uma imagem que de certo modo para si próprio criou, adaptando a esse objectivo os acontecimentos narrados. Para Bernhard “o que se descreve torna evidente algo que corresponde, é certo, ao desejo de verdade daquele que descreve, mas não a verdade, pois a verdade não é transmissível.” Conquanto a ideia de revelar uma existência seja ela própria uma falácia, “só o descarado é capaz de agarrar e desempacotar frases e simplesmente atirá-las ao papel, só o mais descarado é autêntico.” E em boa verdade o é, com uma escrita que reflecte sempre solidão, rancor, humilhação, isolamento e doença. Mas também nela existe música. Bernhard, graças ao seu avô, teve lições de violino, música e canto, formação musical que veio, mais tarde, a notar-se na sua obra literária, particularmente na construção rítmica da sua linguagem, na repetição de palavras e frases. São cinco volumes, escritos sem qualquer pejo, que retratam vinte anos de destruição física e espiritual de um escritor que importa conhecer.

“As pessoas são como são e não se podem mudar, como os objectos que as pessoas fizeram e fazem e hão-de fazer. Na natureza não existem diferenças de valores. São sempre só pessoas com todas as suas fraquezas e com toda a sua imundície física e anímica em cada novo dia. É indiferente se alguém desespera com o seu martelo pneumático ou agarrado à sua máquina de escrever. Só as teorias é que estropiam o que afinal é tão claro, as filosofias e as ciências no seu todo, que se interpõe no caminho da clareza com os seus conhecimentos inúteis. Já quase tudo passou, o que agora ainda vem não surpreende porque todas as possibilidades foram ponderadas.”

No primeiro dos seus cinco livros, A Causa, é a vida no internato que constitui o objecto principal da sua narrativa, descrevendo o funcionamento do internato, o Johanneum, como sempre se chamou, antes e depois do fim da guerra, primeiro como uma instituição nacional-socialista e depois como um lar católico, dando a conhecer ao leitor todas as semelhanças existentes entre uma e outra.

O segundo volume, A Cave, começa no momento em que Thomas Bernhard com 16 anos decide “ir na direcção oposta”, e abandona o liceu. A cave era uma mercearia, situada no bairro mais miserável e mal-afamado de Salzburgo, onde irá mais tarde, após uma gripe mal curada, contrair uma doença pulmonar, que o irá afectar para o resto da vida.

A Respiração descreve a sua permanência num hospital de Salzburgo, onde a pleurisia de que sofre se agrava de tal maneira que é colocado na enfermaria dos moribundos. Consegue sobreviver contra todas as expectativas e é durante o internamento, que o seu avô materno, uma das chamadas “pessoas da sua vida”, vem aí a falecer inesperadamente. Mais tarde é descoberto uma sombra no pulmão, o princípio da tuberculose que a seguir o afecta, e que determina o seu envio para o sanatório.

O quarto volume O Frio, mostra-nos a experiência do escritor nesse sanatório, lugar de encontro da segunda das “pessoas da sua vida”. Tal como Hans Castorp em Montanha Mágica, livro de Thomas Mann, aí reflecte sobre as suas origens, infâncias, constituindo já o caminho que conduz ao último volume. “Sentado no cepo, divertia-me a conferir a conta que o meu avô tinha feito, a adicionar os números colocados uns por baixo dos outros, fazia-o como o aprendiz do comércio na loja, com a mesma precisão, com a mesma falta de consideração pelos compradores. Nós entramos na loja da vida e compramos, e temos nós de pagar a conta. Aí o vendedor não se engana.”

No quinto livro, Uma Criança, é a imagem do avô que ressalta, figura tutelar da sua existência, que o marcou indelevelmente. São os dias felizes, os da infância, em que viveu com o avô ou na sua proximidade.

Bernhard morreu aos 58 anos de idade, na sua casa em Gmunden na Alta Áustria. Polémico mesmo após a sua morte, o ressentimento que durante toda a sua vida dedicou à sua pátria manteve-o até no seu testamento, no qual proíbe a encenação das suas peças teatrais em território austríaco. O seu legado literário inclui dezanove romances, dezassete obras teatrais, entre outros livros breves ou autobiográficos. Conta-nos Thomas Bernhard que, não fosse a sua curiosidade sem vergonha e a sua cobardia perante a ideia de suicídio, e a sua vida teria sido bastante mais curta. “Durante toda a minha vida nunca houve nada que eu mais admirasse do que os suicidas. Eles excedem-me em tudo, tudo, pensei eu sempre, não valho nada e estou preso à vida, por mais horrível e mesquinha, mais asquerosa e infame, mais banal e ignóbil que seja.”

Thomas Bernhard é um escritor de génio e o seu descaramento é o martelo pneumático a que ninguém fica indiferente.

Uma frase ficou sempre na minha cabeça: “Toda a nossa vida, se a tomarmos a sério, não é senão uma sórdida agenda de acontecimentos, no fim completamente rasgado.”